A tendência vinha sendo sugerida desde 2024 e se consolidou nos primeiros meses deste ano. Os investidores estão procurando modelos de negócios que possam escalar e com promessas confiáveis de retorno.

As startups tecnológicas fundadas por argentinos em outros países da América levantaram mais investimentos de risco do que as iniciativas realizadas por seus pares dentro das nossas fronteiras. Pelo menos, no primeiro bimestre.
A tendência já havia se manifestado na segunda metade do ano passado. Mas essa predisposição do mercado parece ter se acentuado porque os investidores ajustaram seus critérios e agora exigem mais tração para continuar apostando. Assim, não é que as startups estejam impedidas de captar capital suficiente, mas está levando muito mais tempo.
De fato, duas empresas de biotecnologia, duas fintechs e uma plataforma de inteligência artificial com sedes na Argentina vêm adiando os anúncios de rodadas de investimento que estavam praticamente fechadas, segundo apurou a revista Pymes.
“A queda nos investimentos levou os fundos a adotarem uma postura mais conservadora e a focarem em startups com modelos de negócio sustentáveis e caminhos claros para a rentabilidade, em vez de apostar em crescimento desmedido”, explicou Leandro Pisaroni, sócio do fundo Kalei Ventures, com o qual investiu na Belo, Wibond e Moova.
“Começaram a olhar com mais cuidado os fundamentals. As métricas são as de sempre: receita recorrente mensal ou anual (MRR ou ARR), taxas de crescimento, margens, custo de aquisição de clientes versus valor do tempo de vida (CAC versus LTV). Mas agora estão sendo exigidas de verdade”, comenta com um sorriso.
Esse contexto talvez explique por que o principal investimento conquistado por um empreendedor argentino até agora em 2025 foi o da N5, uma fintech criada em 2017 por Julián Colombo – após três décadas de trajetória no setor financeiro – que levantou 20 milhões de dólares dos fundos Alexia Ventures e Scale-Up Ventures. A plataforma tecnológica da empresa usa inteligência artificial para integrar softwares de gestão de relacionamento com o cliente, processos de negócio, incentivos e omnicanalidade de instituições como Itaú e Santander.
96% dos negócios da N5 estão fora da Argentina, que ainda assim contribui com mais da metade de seus diretores e quase 20% de seus funcionários. Só no último ano, a empresa expandiu suas operações para Peru, Chile, México e República Dominicana.
“Um banco precisa que a conversa com o cliente possa começar em uma agência e continuar pelo telefone ou internet, sem ter que recomeçar. Também precisa de um processo de concessão de crédito instantâneo e controle de segurança das contas. Tudo isso é resolvido com nossa solução composta por 34 módulos independentes, mas integrados”, explicou Colombo.
Com a recente injeção de recursos, o objetivo é precisamente acelerar a evolução da área de inteligência artificial e o desenvolvimento de soluções com essa tecnologia para o setor financeiro.
“Também planejamos incorporar novos talentos na nossa área de canais e parcerias. O objetivo é fortalecer a rede de parceiros estratégicos e expandir a presença da N5 em mercados da América Latina onde ainda não operamos, assim como no Canadá”, acrescentou Colombo.
Da Colômbia para a região
Os também argentinos Alex Robbio e Tomás González Ruiz, que anteriormente fundaram e venderam a Belatrix Software e a AvanTrip, respectivamente, levantaram 3.470.000 dólares para sua fintech Glim.
Tomás González Ruiz e Alex Robbio, fundadores da Glim
O investimento foi liderado pela Skandia, uma entidade dedicada à gestão de pensões na Colômbia e no México, onde a startup opera. Também participaram os fundos norte-americanos DCG e ParaFi, os locais MatterScale, Newtopia e Wayra, além de um grupo de investidores-anjo.
Glim é uma plataforma fintech impulsionada por blockchain que ajuda as empresas a melhorar sua estratégia de compensação em recursos humanos. Oferece estruturas salariais fiscalmente eficientes, que otimizam os custos com folha de pagamento. Além disso, disponibiliza ferramentas de bem-estar financeiro que incluem carteiras digitais multimoeda, e programas de compras inteligentes que se estendem aos salários dos colaboradores, por meio de descontos corporativos e recompensas em criptomoedas.
“O colaborador recebe um app conectado ao salário, no qual pode escolher se quer receber em dólares ou moeda local, ou ainda optar por sacar durante o mês ou no fim dele, de acordo com os dias já trabalhados – tudo em tempo real”, explicou Robbio.
A iniciativa foi criada em 2022 e conta com metade dos seus funcionários na Argentina e metade na Colômbia. “Ao mesmo tempo, é possível destinar fundos para poupança, investimento ou gastos por meio de um cartão de débito global. Também há um serviço de diagnóstico e uma plataforma de educação e acompanhamento financeiro”, acrescentou Robbio.
Num contexto em que 44% dos trabalhadores da Argentina, Brasil, Chile, Colômbia e México vivem no limite, segundo a recente pesquisa Global Benefits Attitude da WTW, Robbio afirma que o problema não é necessariamente quanto se ganha, mas como se administra. Isso explicaria, segundo ele, a crescente demanda pela Glim.
Atualmente, já utilizam a plataforma colaboradores da loja online regional de produtos para pets Laika, da desenvolvedora de software colombiana Sofka e da tech Blankfactor, adquirida recentemente pela Globant. Segundo o cofundador, o volume de transações anualizado da plataforma já é de US$ 2 milhões, crescendo a um ritmo de 20% ao mês nos últimos seis meses. Por isso, Robbio pretende destinar o novo aporte à comercialização do produto.
A startup Quix, especializada em capacitação corporativa, também acaba de fechar uma rodada de investimento pre-seed no valor de US$ 350.000. Contou com o apoio do fundo argentino Mr. Pink e do dominicano Venture.Do.
Seu time fundador é composto pelos argentinos Ignacio Barrea e Julia Insúa, e pelos colombianos Santiago Gómez e Carlos Alarcón – todos com ampla experiência no setor, especialmente como diretores de operações, finanças e inteligência artificial nas plataformas edtech Digital House e Platzi.
Criada no ano passado, a Quix oferece uma plataforma de treinamento corporativo que utiliza inteligência artificial para gerar programas personalizados de capacitação em apenas 48 horas. “A plataforma transforma documentos internos, vídeos e apresentações em cursos adaptados às necessidades de cada empresa”, explicou Barrea.
“A Quix foca em treinamentos must have, e não nice to have. O colaborador aprende o que precisa para realizar suas tarefas, de acordo com as diretrizes da organização, sem sair das plataformas que já usa no dia a dia e com a supervisão de um tutor virtual. Isso nos permitiu atingir taxas de conclusão de até 70%”, destacou.
Seu modelo SaaS (software como serviço), pelo qual as empresas pagam cinco dólares por mês por colaborador, permitiu capacitar cerca de 10.000 funcionários de empresas como Coca-Cola, a imobiliária Acrecer e a têxtil Grupo Crystal no ano passado.
Segundo Barrea, parte importante do investimento será destinada ao desenvolvimento tecnológico e à ampliação do time de engenharia. “Além disso, estamos de olho em expandir para grandes mercados regionais, como o México”, completou.
Com um pé aqui e outro lá
O cofundador da startup Kigüi, Mauricio Kremer, pretende utilizar o investimento de US$ 500.000 recém-capitado para consolidar sua presença nos mercados do México, Peru e Argentina. A rodada foi liderada pelo fundo The Yield Lab, juntamente com outros investidores dos Estados Unidos e da Argentina.
Embora tenha sido criada em 2021 como um aplicativo voltado ao consumidor final – que permitia reduzir o desperdício de alimentos próximos do vencimento nos pontos de venda –, a Kigüi passou por um pivot há seis meses e adotou um modelo B2B.
“Encontramos uma forma mais eficiente de resolver o problema desde a raiz: digitalizando a data de validade dos produtos embalados”, explicou Kremer, cofundador ao lado de Maximiliano Dicranian. “Com essas informações, podemos sugerir ações para melhorar a rotação dos produtos e evitar perdas”, destacou.
Gonzalo Castro Peña, Nicolás Ruberto, Mauricio Kremer, Diana de la Sancha, Maximiliano Dicranian e Octavio Bidegain, da equipe de Kigüi.
Com esse novo modelo de negócio, a startup já trabalha com clientes como Walmart, no México, e Cencosud, no Peru. O empreendedor destacou que “75% dos produtos com data de validade próxima é detectado a tempo. Deste total, 80% é vendido com preços diferenciados. Tudo isso reduz em mais de 30% a perda de produtos”.
ZEV Biotech, por sua vez, é uma startup de base científica e tecnológica que, desde 2017, se dedica ao desenvolvimento, fabricação e comercialização de kits de diagnóstico molecular para uso humano.
“Criamos nossa própria tecnologia IRIS, baseada em PCR e microarray, que permite realizar diagnósticos de alta complexidade em qualquer laboratório, hospital ou instituição de saúde. Inclui reagentes, equipamentos e software próprios”, detalhou Maximiliano Irisarri, doutor em Biologia e fundador da empresa sediada na Fundação Argentina de Nanotecnologia.
Concretamente, seu teste de trombofilia hereditária já foi aprovado pela ANMAT (Agência Nacional de Medicamentos, Alimentos e Tecnologia Médica da Argentina), e a startup espera faturar US$ 100.000 em 2025 com sua comercialização. No entanto, acaba de receber um investimento de US$ 600.000 de um grupo de capital privado, juntamente com os já acionistas GridX.
Nesse sentido, a empresa planeja usar os recursos para desenvolver novos diagnósticos. Por exemplo, o primeiro teste específico para a América Latina voltado à resistência antimicrobiana, em parceria com especialistas da Fundação Invera.
“É o produto mais disruptivo do nosso portfólio, para ajudar a combater a ameaça das infecções resistentes a antibióticos e antimicrobianos. De fato, chamou a atenção de especialistas no Brasil, onde abrimos uma subsidiária e fechamos um acordo com a Universidade Federal de São Paulo”, acrescentou Gilberto Ugalde, CEO e investidor da ZEV.
Como não poderia deixar de ser, praticamente a única startup com foco no mercado local (embora com projeção regional) que recebeu um investimento relevante no primeiro bimestre é voltada ao setor agro.
Trata-se da biotecnológica Calice, que acaba de fechar uma rodada de investimentos e assegurou US$ 1.500.000. O fundo argentino Draper Cygnus liderou o aporte, acompanhado por Xperiment Ventures, Air Capital, Innventure e também pelo fundo australiano GrainCorp Ventures.
Andrés Rabinovich, Esteban Hernando, Pablo Romero e Ramiro Olivera, fundadores de Calice.
Fundada em 2022 pelos cientistas argentinos Ramiro Olivera, Esteban Hernando e Andrés Rabinovich, junto com o engenheiro Pablo Romero, a startup possui sedes em Buenos Aires e em São Francisco, nos Estados Unidos.
Lá, dedica-se a transformar o setor agropecuário, pelo menos em parte, por meio da virtualização de ensaios de campo, com o objetivo de acelerar o desenvolvimento de cultivos e produtos biológicos. “Desenvolvemos uma plataforma de ensaios de campo virtuais que utiliza inteligência artificial e modelagem computacional”, explicou Olivera.
A vantagem prometida por essa tecnologia é a redução drástica de tempo e custos.
“Concretamente, estimamos que podemos reduzir em até 80% a necessidade de ensaios em campo e em até 50% os tempos de desenvolvimento”, afirmou o empreendedor. A Calice dedicou o ano passado à validação dessa capacidade por meio de provas de conceito no modelamento de cultivos como milho, cevada, trigo, arroz e soja, em parceria com empresas argentinas e multinacionais que o empreendedor preferiu não mencionar.
“Após essas validações, projetamos fechar contratos no valor de US$ 800.000 em 2025, por meio do licenciamento da plataforma”, destacou Olivera. Os sócios da empresa pretendem destinar boa parte do aporte de US$ 1.500.000 que acabaram de levantar à expansão comercial da sua oferta na Argentina, Brasil e Estados Unidos.
“Nosso modelo de negócios é global, já que os ensaios de campo virtuais não possuem barreiras geográficas. Eles nos permitem trabalhar com clientes de qualquer parte do mundo, sem depender do contexto econômico local”, concluiu o fundador.