Quando as ferramentas criadas para explicar o mundo se transformam em normas que o governam, a arte, a criatividade e a liberdade estão em risco. Estamos fazendo com a Inteligência Artificial o mesmo que fizemos com a Poética de Aristóteles?
Uma velha história: quando descrever virou prescrever
Na história da literatura, a Poética de Aristóteles representa um dos exemplos mais antigos e contundentes de como uma ferramenta de análise pode ser mal interpretada como um mandamento. Aristóteles escreveu esse tratado para descrever como funcionava a tragédia em sua época, não para impor regras à criação futura. Mas séculos depois, especialmente após a queda da hegemonia grega, sua obra foi tomada como um cânone. Assim, por muito tempo, os artistas não criaram livremente: escreveram conforme “deviam”, segundo Aristóteles.
IA: uma nova poética para o século XXI?
Hoje, estamos diante de uma tecnologia que compartilha perigosamente essa mesma derivação: a Inteligência Artificial. Embora tenha sido concebida para auxiliar, potencializar, sugerir ou analisar, cada vez mais ela é tratada como uma autoridade. Os algoritmos definem o que vemos, o que lemos, o que é considerado eficiente ou criativo. Assim como a Poética, a IA nasceu para descrever; e como a Poética, começa a ditar.
Nenhum filósofo ou imperador nos impõe isso. Nós mesmos impomos — por comodidade, por pressão social, por eficiência, por medo de ficar de fora. E a cada “recomendação”, a cada texto autogerado, a cada decisão tomada por um sistema treinado em dados passados, cedemos um pouco da nossa capacidade de escolher, de duvidar, de criar na contramão.
O vertigem de não poder parar: tecnofobia por exclusão e ansiedade por desatualização
Nesse cenário, emerge uma sensação compartilhada, mas raramente verbalizada: a de que não se pode não usar tecnologia. Que se desconectar é “ficar para trás”. Esse fenômeno, conhecido como ansiedade por desatualização (FOMO tecnológico, do inglês Fear of Missing Out), se entrelaça com uma forma contemporânea de tecnofobia por exclusão — onde o medo não vem do uso da tecnologia em si, mas da possibilidade de ficar fora do sistema social, profissional ou cultural por não adotá-la.
Trata-se de uma forma de pressão adaptativa do ambiente digital, reforçada pelo efeito de rede: quanto mais pessoas adotam uma tecnologia, mais caro se torna se abster. Como os escritores de antigamente que sentiam que não podiam ignorar as regras aristotélicas se quisessem ser levados a sério, hoje profissionais, criadores e empresas sentem que não podem abrir mão da IA sem arriscar seu lugar no ecossistema contemporâneo.
Essa ilusão de inevitabilidade é, talvez, o sinal mais claro de que a ferramenta deixou de ser ferramenta — e virou norma. E normas, quando aceitas sem consciência, deixam de ser aliadas para se tornar prisões.
Epílogo: voltar a olhar para o instrumento
A lição que a Poética nos deixa é urgente e clara: não confundamos análise com mandamento. Não confundamos eficiência com verdade. Não confundamos uma ferramenta poderosa com uma bússola moral.
A Inteligência Artificial pode abrir caminhos extraordinários. Mas seu poder não deve ofuscar nossa liberdade de criar, de discordar, de desconectar — e de voltar a olhar, sem filtros, para o mundo que existe além do algoritmo.